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31 de maio de 2025

Bocanada (Review)

    Sabe, quando alguém se torna mais velho, e se começa a sair mais de casa à noite, principalmente em uma cidade pequena, eu sinto que a sua visão daquele lugar muda bastante. Mesmo partilhando coordenadas geográficas num mapa, aqueles não são os mesmos lugares. O tipo de pessoa que circula é diferente, estabelecimentos que você nunca tinha notado, talvez por estarem sempre fechados durante o dia, agora ferviam de movimento e vida, a cidade incorpora sua identidade secreta, e "Urbano" ganha um novo significado.

    Bocanada se parece com a trilha sonora de, numa noite fria, entrar em um bar quentinho, desses que você antes nem sabia que existia, e lá encontrar o seu próprio pontinho de refúgio em frente à indiferença da cidade. A música, de acordo com a definição do dicionário, envolve a expressão por meio de sons, utilizando da audição como meio para transmitir alguma coisa rítmica, ou harmônica para alguém (definição essa que é bastante desafiada por alguns), mas, esse álbum despeja tanta informação por meio de ondas sonoras que parte disso transborda para os outros sentidos... eu me sinto como se conseguisse ver essas músicas, como se meu corpo fosse transportado para algum lugar e eu pudesse tocá-las, o começo de 'Beautiful', com um órgão ou sintetizador bem baixinho, ofuscado por um som parecido com o de um sonar, me joga pro fundo do mar, só pra aos poucos se fundir com uma batida em downtempo e evoluir para a canção que é. O som escuro encontra um feixe de luz na forma da voz de Cerati, sensual e aveludada, vem emparelhada com frases que convém um turbilhão de emoção mesmo mantendo uma simplicidade invejável.

    Quando ele canta, "Y es tan beautiful, como lo pensé. I'm beautiful, Estrella de miel... Estrella de miel!" algo tão essencialmente básico como chamar alguém de lindo toma uma forma tão majestosa... eu não consigo visualizar na minha mente como seria uma estrela de mel, e no papel isso não tem a menor conexão com a beleza humana, mas quando ELE canta, você sente tudo isso, não é uma letra pra ser lida, e sim uma poesia trancada cujas chaves são guardadas pela voz impecável de Gustavo Cerati.

 

     Cada música é um mundinho como esse, não é um álbum que dá pra se analisar como um todo, afinal cada faixa nova tem um trecho que emana uma nova emoção indecifrável pra mim,

     É impressionante o quão bem esse disco envelheceu, se dá pra dizer que ele envelheceu... Enquanto discos da época acabam caindo em estilos que remetem muito bem essa época, como o grunge que estava de saída, o nu metal que estava chegando, ou a era bling do Hip Hop que viria depois, Bocanada permanece de pé como um pilar da fundação de um prédio, tão universal que nem em um gênero ele se encaixa direito, a base de dados do RYM o classifica como Downtempo, Art Pop, e Neo Psychedelia, só os três dos gêneros mais amplos do site, talvez a melhor etiqueta para esse álbum realmente seja Art Pop, já que é arte, e é pop.

    O disco orbita sob essa ideia e a ataca de múltiplos ângulos diferentes, Rio Babel é mais tranquila, consistente, quase como se esse rio fictício fosse um refúgio urbano, um parque no meio da cidade, que, mesmo acorrentado por uma selva de concreto, "Flui sem um fim", tal qual o refrão da música.

    Puente é o maior hit do álbum com mais de 100 milhões de views no YouTube, e, sinceramente, Puente nem é tão profunda assim, só é uma música boa, muito, muito boa. Eu adoro o videoclipe que acompanha a canção, onde o Gustavo leva várias pessoas pra passear na sua moto/helicóptero (motocóptero?) pelas ruas de Buenos Aires. As reflexões das luzes neon da cidade, o permanente filtro azulado que cobre a cabine, os efeitos especiais meio bobinhos, mas a minha parte favorita foi ver como em quase 30 anos Buenos Aires não mudou quase nada, as ruas onde ele passa são iguaizinhas as que eu visitei lá!


 

    Talvez todo o álbum aponte para Verbo Carne como o seu ápice, sendo a música nº8, ela fica perfeitamente no meio da tracklist, e sinaliza uma mudança de tom bem drástica entre as músicas anteriores e as posteriores à ela.

    Gravado em conjunto com a orquestra de Abbey Road, essa música tem um tom bem mais melancólico que as demais, a sinfonia acompanha uma letra enigmática e cheia de simbolismos que talvez apontavam para o seu casamento em ruína (Ele iria se divorciar em 2002, 3 anos após o lançamento de Bocanada), e Cerati se mostra em seu estado mais frágil e desesperado, clamando pela ajuda de algum ser externo, divino, algum milagre para normalizar sua vida, uma imagem de Cristo renderizada em 3D, olha pra ele mas não responde. Talvez a culpa tenha sido dele mesmo.

    Raiz é sensacional, os instrumentos de sopro, como a flauta e o saxofone, são suaves mas extremamente intrigantes, quando ele canta: "¿Qué otra cosa es un árbol, Más que libertad?", o saxofone que vem junto desse trecho me arrepiou pelas primeiras 10 vezes que eu escutei essa música, por falta de palavra melhor, é um dos pedaços de música mais orgásmicos que eu já escutei na minha vida.

    O resto do álbum é bem mais relaxado, e também é o que me impede de dar esse álbum uma nota perfeita de 5/5. 5 minutos de um beat meio club ocasionalmente interrompido pelo Gustavo sussurrando "Y si el humo esta en foco..." ou por uma guitarra sutil é legal, mas definitivamente não precisava durar 5 minutos.

    Aqui & Ahora é mais curto, mas segue sendo mais um interlude longo do que uma música por conta própria, esses cortes finais demonstram muito bem a alma experimental de Bocanada, mas também mostram como nem sempre o resultado é perfeição cristalina que nem foi anteriormente, não me entenda mal, Aqui & Ahora é a música de elevador mais legal do mundo, mas ainda é de elevador.

    O Chiptune em Alma é bastante interessante, e adapta muito bem um estilo extremamente nichado para uma música escutável pra públicos gerais, e Balsa novamente é outro interlude de 5 minutos. Se essas músicas que eu mencionei fossem um pouquinho mais curtas, talvez como trechos em outras músicas ou interludes que no máximo durem 2 minutos, Bocanada realmente seria um álbum perfeito.

    Mas é melhor assim, a existência da imperfeição e o desequilíbrio desse álbum só o torna mais interessante pra mim, e mostra o quão milagroso é o fato de que esse disco uma dúzia das melhores músicas de pop da história, e, depois de fazer o quase impossível, talvez essas músicas sejam só um "Victory Lap" pra Cerati, que fez um disco tão bom que nem precisava espremer tudo em um projeto mais curto.

    Talvez Balsa seja o que toque quando você sai daquele bar quentinho, volta pras ruas mais tarde na noite, as avenidas, agora mais vazias, sem aquele fervor de pessoas procurando o próximo rolê, quando a escuridão só não abrange todos os seus arredores por conta da ocasional luz artificial, e quando só resta voltar pra casa e aguardar o próximo dia. Obrigado por ler.

Nota: 4.5/5